A INCRÍVEL VIDA DE BARBA
Vocês não acreditam em utopia, mas vou criar
uma república onde vocês vão ficar milionários
sem precisar trabalhar.
No agreste
pernambucano, vivia uma família em condições precárias como a maioria do povo
nordestino, onde o coronelismo imperava e as ações dos governos não chegavam.
Água para regar a terra e para saciar a sede no sertão era anunciada de eleição
em eleição.
O chefe dessa família
era flamenguista e queria montar um time de futebol com seus filhos, mas nasceram
mulheres no meio e atrapalhou seus planos. Parou no décimo segundo filho. Quis
batizá-lo com o nome de Virgulino, em homenagem a Lampião. Mas a mãe católica
devota não topou. Discutiu e ganhou: seria Inácio, em homenagem a Santo Inácio
de Loyola, um jesuíta que chefiara a Companhia de Jesus e que andara por
aquelas bandas, sendo tido como um homem sábio e santo.
O pai de família
olhava para aquela trupe e resmungava em alto e bom tom: “bem que o papa tinha
razão, católico e pobre não podem trepar que nem coelho”.
– Mas que diabo –
resmungava, o padre não deixa a gente usar camisinha, abortar, nem gozar fora
do buraco.
– Como fazer? –
indagou a si mesmo.
Vivia de bar em bar, sempre à procura de um amigo
para tomar uma cachaça para esquecer as agruras e o destino ingrato que a vida
lhe reservara. Quando chegava a casa, não tinha paciência com o choro do
Inácio, que com fome teimava em comer e, então, dava-lhe com o pé na bunda. “Vai
trabalhar, vagabundo!”, incitava o filho. O Inácio não tinha nem cinco anos
ainda. Com a fome apertando, Inácio começou a vender jornal velho como se fosse
do dia, batendo de casa em casa. Ganhava uns pirulitos. E tome esporro do pai
por não trazer dinheiro! Numa prateleira de madeira carcomida, o Inacinho
ficava a observar a garrafa que o pai tinha ali. No rótulo, ele aprendeu depois
o nome: Pau que dá em dois.
Percebeu que uns goles daquela garrafa
saciavam sua fome e assim começou sua vida de cachaceiro.
Certo dia, o desgosto do pai era tão grande
que tomou uma medida drástica: juntou a família, botou dentro de um pau de
arara e tocou para São Paulo, a terra prometida de Canaã sobre a qual a família
ouvia tanto o padre pregar na paróquia. Lá chegando, largou a família no primeiro
buraco que encontrou e desapareceu da face da terra. Nunca mais se ouviu falar
nele.
Mãe que é mãe não abandona os filhos, e
esta manteve a criançada debaixo de suas asas. O mais instruído da família era
o frei Bento, que recebeu esse apelido porque parecia com um frade careca que
eles conheceram nas cercanias de São Paulo.
Inacinho foi crescendo ali no meio daquela
pobreza, mas não se queixava, o que ele queria era jogar bola na rua. Tentou
vender jornal velho, mas descobriu que paulista não era trouxa. Tentou ser
engraxate, mas não levou jeito. De uma maneira ou de outra, aos atropelos, foi
crescendo, crescendo até a idade de servir ao Exército. Seria um refresco, mas
qual, isso de pátria amada Brasil não era com ele, já cumpria o seu papel de
sobrevivente até ali. Seu irmão, o frei Bento, se dizia comunista, lera Marx,
Engels e outros idiotas apologistas da ditadura do proletariado.
Um dia, frei Bento
falou para Inácio: “Está na hora de você começar a trabalhar. Tenho uns amigos
metalúrgicos que podem arranjar uma colocação para você.”
Inácio não gostou
muito da história de trabalhar, mas topou. O amigo o apresentou ao chefe de
turma da metalúrgica Pega pra Capar e ele foi contratado como ferramenteiro,
com salário mínimo. Sua função era entregar a ferramenta aos operários pela manhã,
anotar numa ficha, dar baixa à tarde quando a recebesse de volta. Como era
semianalfabeto, as fichas ficavam atrasadas e acabou levando um esporro do
chefe de turma.
Certo dia,
perguntou a um colega de trabalho, que era torneiro, se ele podia dar uma espiada
no trabalho do companheiro para ver se ele aprendia a profissão e assim
aumentar o seu salário, já que o salário mínimo só dava para a cachaça, e a mãe
precisava colocar coisas dentro de casa. O colega topou, mas pediu silêncio sobre
isso. E lá foi o Inácio ver como era o tal de torno do colega. Ficou fascinado
vendo aquela geringonça cortando ferro como se fosse uma lâmina de barbear.
Pediu ao colega para dar uma torneada. No primeiro gesto, foi-se embora um dedo.
Foi uma merda. O torneiro foi suspenso, mas foi o início da redenção do Inácio.
Foi encostado no INPS e passou a receber sem trabalhar. Era tudo que queria na
vida.
Frei Bento havia
planejado toda a vida do Inácio, sem que ele soubesse. Ele observara que o
Inácio era perseverante e corria atrás. Viu isso lá no sertão quando Inácio
corria atrás das frangas e conseguia seu intento. As frangas faziam o maior
berreiro quando viam o Inácio com aqueles olhos esbugalhados e brilhantes. As
cabras no pasto já não ligavam e topavam tudo que o Inácio fazia com elas.
Chamou o Inácio num
canto e disse: “você não vai ganhar a vida como jogador de futebol. Você não
joga nada, desiste. Você tem que entrar para o sindicato.”
– Mas que porra é
essa? – indagou o Inácio.
– Vou te levar lá
para você conhecer nossa organização.
Começou a
frequentar as reuniões do sindicato e a entender o objetivo daquele monte de
gente que queria ganhar salário sem trabalhar. Pensavam como ele, isso era bom.
Para reforçar seu aprendizado, frei Bento levou-o às reuniões da Juventude
Católica, onde os padres comunistas faziam sua catequese e pregavam sua ladainha.
Lá ficou conhecendo o frei Neto, o frei Buff e outros bofes. Inácio nunca havia
lido um livro, sequer um jornal, mas aprendia tudo por osmose ou de orelhada.
Realmente tinha um QI altíssimo, muito acima daqueles dirigentes de sindicato
com quem estava convivendo. Quando lhe ofereceram a vice-presidência do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, recusou. Só aceitava a presidência.
E assim foi. Na
eleição seguinte, o presidente o lançou à sua sucessão. Ninguém o conhecia
direito, mas, devido a sua barba preta, hirsuta, olhar de mau, nunca sorria,
passou a ser chamado pelo nome de Barba pelos companheiros de sindicato.
Daí para frente,
era o Barba Inácio da Selva. O pai preferiu o sobrenome de Selva porque era fã
do Leônidas da Selva, centroavante do América do Rio de Janeiro.
Falando fácil, mas
errando no português, nas vírgulas, nas pontuações e nas concordâncias, o Barba
fez o maior sucesso no movimento sindical. Não saía das portas das fábricas
discursando e reforçando os slogans que frei Bento lhe ensinara: “abaixo a
ditadura”, “o petróleo é nosso”, “fora o capital financeiro espoliativo”,
“morte aos ianques” e outras idiotices que 40 anos depois os petistas saudosos
do comunismo ainda gritam, só que dessa vez com muita propriedade: “A Petrobras
é nossa”.
Os patrões mandavam
chamar o Barba ao escritório e, lá dentro, olho no olho, acertavam o preço para
encerramento do palavrório do novo operário revolucionário.
Discursar estava
ficando chato e batido, então resolveu fazer greve. Da mesma forma, os patrões
o chamavam para uma reunião particular e acertavam o valor do encerramento da
greve. Quando os patrões queriam aumentar os seus preços e o governo não
concordava, eles convocavam o Barba e acertavam uma greve até o governo ceder.
Numa dessas greves ilegais, o Barba foi preso e passou trinta dias no xadrez,
onde teria revelado instintos bestiais, segundo o depoimento de um amigo dele.
A prisão foi uma encenação, foi apenas um treinamento que recebeu do DOPS para
ser o X-9 do governo militar. Ganhou uma polpuda aposentadoria, de mais de 7 mil
reais, a preços de 2015, algo impensável para qualquer contribuinte do atual
INSS que trabalhou 35 anos contribuindo com o teto máximo.
Barba foi o primeiro preso a fazer delação
premiada no Brasil. Denunciou seus companheiros grevistas de sindicato, em
troca de uma aposentadoria milionária do INSS, sem ter nem chegado à idade de
Cristo.
Os planos de frei
Bento para o jovem Inacinho iam acontecendo de vento em popa. O próximo passo
seria lançá-lo candidato a deputado federal.
– Que porra é essa,
mano? O que faz um deputado?
– Não sei, você tem
que ir pra lá e depois contar pra gente o que deputado faz – respondeu o frei Bento.
Para ser deputado
por São Paulo, foi uma barbada, não só pelos votos dos sindicalistas como pela
idiotice de muitos paulistas que pensam estar sendo engraçados. Elegeram Barba,
como elegeram o Cacareco, o Tiririca, o Enéas, o Markito.
Lá chegando, não
abriu a boca. Viu que Brasília era diferente das portas das fábricas, havia
gente mais culta, mais estudada e jamais fez um discurso qualquer. Foi uma
nulidade, terminou o mandato como entrou, sem qualquer projeto, opinião,
discurso, reivindicação. Claro, nunca trabalhara, não tinha ideia nenhuma sobre
os problemas nacionais, como a energia era gerada, a água tratada, metrô, usina
nuclear, educação, segurança... Não sabia nada de nada!
Quando retornou de
Brasília, decidido a não mais se candidatar, seu irmão perguntou:
– E aí, o que você
viu lá?
– Vi trezentos e um
picaretas.
– Trezentos e um?
Não eram 300?
– Eram trezentos
quando cheguei, mas aí passou para 301.
Frei Bento entrou
em ação de novo:
– O que é isso,
Barba, desistir logo agora que tudo está dando certo, o seu projeto de poder,
você que tanto inveja o Médici, o Geisel, agora vai dar para trás? Vamos
participar sim da próxima eleição presidencial – decidiu Frei Bento.
– Mas, mano, terei que fazer debate com
Brizola, Ulisses Guimarães, Silvio Santos, todos mais preparados do que eu. E
tem um tal de Fernandinho das Alagoas que tem o sinistro PC Farias como
arrecadador de grana. Como vou enfrentá-lo?
– Quanto ao arrecadador, você não sabe do que
somos capazes, vamos montar um esquema de mensalão e outro de petrolão. Quanto
às provocações, é só você não deixar o seu na reta. Nada de dar aparelho de
três em um para amante nem viajar pelo mundo com sua secretária que depois vai
dizer que é sua namorada. E tem mais: você vai ter que mentir pra caramba e, se
for pego com a mão na botija, vai dizer que não sabia nada de nada.
Barba tornou-se o
maior fenômeno político das terras de Santa Cruz sem nunca saber de nada.
Depois do sucesso
na liderança do cartel do petróleo, os companheiros acrescentaram uma nova
alcunha ao seu nome. Passou a ser o Brahma Barba Inácio da Selva.
Em momento de
grande sinceridade, Brahma discursou para seus correligionários: “estou no
volume morto, o partido está abaixo do volume morto”.
Só o futuro dirá
onde passará seus últimos dias. Na Papuda ou em Cuba: são as opções até o
momento.