quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

A INCRÍVEL VIDA DE BARBA

A INCRÍVEL VIDA DE BARBA


Vocês não acreditam em utopia, mas vou criar 
uma república onde vocês vão ficar milionários
 sem precisar trabalhar.


No agreste pernambucano, vivia uma família em condições precárias como a maioria do povo nordestino, onde o coronelismo imperava e as ações dos governos não chegavam. Água para regar a terra e para saciar a sede no sertão era anunciada de eleição em eleição.
O chefe dessa família era flamenguista e queria montar um time de futebol com seus filhos, mas nasceram mulheres no meio e atrapalhou seus planos. Parou no décimo segundo filho. Quis batizá-lo com o nome de Virgulino, em homenagem a Lampião. Mas a mãe católica devota não topou. Discutiu e ganhou: seria Inácio, em homenagem a Santo Inácio de Loyola, um jesuíta que chefiara a Companhia de Jesus e que andara por aquelas bandas, sendo tido como um homem sábio e santo.
O pai de família olhava para aquela trupe e resmungava em alto e bom tom: “bem que o papa tinha razão, católico e pobre não podem trepar que nem coelho”.
– Mas que diabo – resmungava, o padre não deixa a gente usar camisinha, abortar, nem gozar fora do buraco.
– Como fazer? – indagou a si mesmo.
 Vivia de bar em bar, sempre à procura de um amigo para tomar uma cachaça para esquecer as agruras e o destino ingrato que a vida lhe reservara. Quando chegava a casa, não tinha paciência com o choro do Inácio, que com fome teimava em comer e, então, dava-lhe com o pé na bunda. “Vai trabalhar, vagabundo!”, incitava o filho. O Inácio não tinha nem cinco anos ainda. Com a fome apertando, Inácio começou a vender jornal velho como se fosse do dia, batendo de casa em casa. Ganhava uns pirulitos. E tome esporro do pai por não trazer dinheiro! Numa prateleira de madeira carcomida, o Inacinho ficava a observar a garrafa que o pai tinha ali. No rótulo, ele aprendeu depois o nome: Pau que dá em dois.
  Percebeu que uns goles daquela garrafa saciavam sua fome e assim começou sua vida de cachaceiro.
  Certo dia, o desgosto do pai era tão grande que tomou uma medida drástica: juntou a família, botou dentro de um pau de arara e tocou para São Paulo, a terra prometida de Canaã sobre a qual a família ouvia tanto o padre pregar na paróquia. Lá chegando, largou a família no primeiro buraco que encontrou e desapareceu da face da terra. Nunca mais se ouviu falar nele.
Mãe que é mãe não abandona os filhos, e esta manteve a criançada debaixo de suas asas. O mais instruído da família era o frei Bento, que recebeu esse apelido porque parecia com um frade careca que eles conheceram nas cercanias de São Paulo.
Inacinho foi crescendo ali no meio daquela pobreza, mas não se queixava, o que ele queria era jogar bola na rua. Tentou vender jornal velho, mas descobriu que paulista não era trouxa. Tentou ser engraxate, mas não levou jeito. De uma maneira ou de outra, aos atropelos, foi crescendo, crescendo até a idade de servir ao Exército. Seria um refresco, mas qual, isso de pátria amada Brasil não era com ele, já cumpria o seu papel de sobrevivente até ali. Seu irmão, o frei Bento, se dizia comunista, lera Marx, Engels e outros idiotas apologistas da ditadura do proletariado.
Um dia, frei Bento falou para Inácio: “Está na hora de você começar a trabalhar. Tenho uns amigos metalúrgicos que podem arranjar uma colocação para você.”
Inácio não gostou muito da história de trabalhar, mas topou. O amigo o apresentou ao chefe de turma da metalúrgica Pega pra Capar e ele foi contratado como ferramenteiro, com salário mínimo. Sua função era entregar a ferramenta aos operários pela manhã, anotar numa ficha, dar baixa à tarde quando a recebesse de volta. Como era semianalfabeto, as fichas ficavam atrasadas e acabou levando um esporro do chefe de turma.
Certo dia, perguntou a um colega de trabalho, que era torneiro, se ele podia dar uma espiada no trabalho do companheiro para ver se ele aprendia a profissão e assim aumentar o seu salário, já que o salário mínimo só dava para a cachaça, e a mãe precisava colocar coisas dentro de casa. O colega topou, mas pediu silêncio sobre isso. E lá foi o Inácio ver como era o tal de torno do colega. Ficou fascinado vendo aquela geringonça cortando ferro como se fosse uma lâmina de barbear. Pediu ao colega para dar uma torneada. No primeiro gesto, foi-se embora um dedo. Foi uma merda. O torneiro foi suspenso, mas foi o início da redenção do Inácio. Foi encostado no INPS e passou a receber sem trabalhar. Era tudo que queria na vida.
Frei Bento havia planejado toda a vida do Inácio, sem que ele soubesse. Ele observara que o Inácio era perseverante e corria atrás. Viu isso lá no sertão quando Inácio corria atrás das frangas e conseguia seu intento. As frangas faziam o maior berreiro quando viam o Inácio com aqueles olhos esbugalhados e brilhantes. As cabras no pasto já não ligavam e topavam tudo que o Inácio fazia com elas.
Chamou o Inácio num canto e disse: “você não vai ganhar a vida como jogador de futebol. Você não joga nada, desiste. Você tem que entrar para o sindicato.”
– Mas que porra é essa? – indagou o Inácio.
– Vou te levar lá para você conhecer nossa organização.
Começou a frequentar as reuniões do sindicato e a entender o objetivo daquele monte de gente que queria ganhar salário sem trabalhar. Pensavam como ele, isso era bom. Para reforçar seu aprendizado, frei Bento levou-o às reuniões da Juventude Católica, onde os padres comunistas faziam sua catequese e pregavam sua ladainha. Lá ficou conhecendo o frei Neto, o frei Buff e outros bofes. Inácio nunca havia lido um livro, sequer um jornal, mas aprendia tudo por osmose ou de orelhada. Realmente tinha um QI altíssimo, muito acima daqueles dirigentes de sindicato com quem estava convivendo. Quando lhe ofereceram a vice-presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, recusou. Só aceitava a presidência.
E assim foi. Na eleição seguinte, o presidente o lançou à sua sucessão. Ninguém o conhecia direito, mas, devido a sua barba preta, hirsuta, olhar de mau, nunca sorria, passou a ser chamado pelo nome de Barba pelos companheiros de sindicato.
Daí para frente, era o Barba Inácio da Selva. O pai preferiu o sobrenome de Selva porque era fã do Leônidas da Selva, centroavante do América do Rio de Janeiro.
Falando fácil, mas errando no português, nas vírgulas, nas pontuações e nas concordâncias, o Barba fez o maior sucesso no movimento sindical. Não saía das portas das fábricas discursando e reforçando os slogans que frei Bento lhe ensinara: “abaixo a ditadura”, “o petróleo é nosso”, “fora o capital financeiro espoliativo”, “morte aos ianques” e outras idiotices que 40 anos depois os petistas saudosos do comunismo ainda gritam, só que dessa vez com muita propriedade: “A Petrobras é nossa”.
Os patrões mandavam chamar o Barba ao escritório e, lá dentro, olho no olho, acertavam o preço para encerramento do palavrório do novo operário revolucionário.
Discursar estava ficando chato e batido, então resolveu fazer greve. Da mesma forma, os patrões o chamavam para uma reunião particular e acertavam o valor do encerramento da greve. Quando os patrões queriam aumentar os seus preços e o governo não concordava, eles convocavam o Barba e acertavam uma greve até o governo ceder. Numa dessas greves ilegais, o Barba foi preso e passou trinta dias no xadrez, onde teria revelado instintos bestiais, segundo o depoimento de um amigo dele. A prisão foi uma encenação, foi apenas um treinamento que recebeu do DOPS para ser o X-9 do governo militar. Ganhou uma polpuda aposentadoria, de mais de 7 mil reais, a preços de 2015, algo impensável para qualquer contribuinte do atual INSS que trabalhou 35 anos contribuindo com o teto máximo.
  Barba foi o primeiro preso a fazer delação premiada no Brasil. Denunciou seus companheiros grevistas de sindicato, em troca de uma aposentadoria milionária do INSS, sem ter nem chegado à idade de Cristo.
Os planos de frei Bento para o jovem Inacinho iam acontecendo de vento em popa. O próximo passo seria lançá-lo candidato a deputado federal.
– Que porra é essa, mano? O que faz um deputado?
– Não sei, você tem que ir pra lá e depois contar pra gente o que deputado faz  – respondeu o frei Bento.
Para ser deputado por São Paulo, foi uma barbada, não só pelos votos dos sindicalistas como pela idiotice de muitos paulistas que pensam estar sendo engraçados. Elegeram Barba, como elegeram o Cacareco, o Tiririca, o Enéas, o Markito.
Lá chegando, não abriu a boca. Viu que Brasília era diferente das portas das fábricas, havia gente mais culta, mais estudada e jamais fez um discurso qualquer. Foi uma nulidade, terminou o mandato como entrou, sem qualquer projeto, opinião, discurso, reivindicação. Claro, nunca trabalhara, não tinha ideia nenhuma sobre os problemas nacionais, como a energia era gerada, a água tratada, metrô, usina nuclear, educação, segurança... Não sabia nada de nada!
Quando retornou de Brasília, decidido a não mais se candidatar, seu irmão perguntou:
– E aí, o que você viu lá?
– Vi trezentos e um picaretas.
– Trezentos e um? Não eram 300?
– Eram trezentos quando cheguei, mas aí passou para 301.
Frei Bento entrou em ação de novo:
– O que é isso, Barba, desistir logo agora que tudo está dando certo, o seu projeto de poder, você que tanto inveja o Médici, o Geisel, agora vai dar para trás? Vamos participar sim da próxima eleição presidencial – decidiu Frei Bento.
 – Mas, mano, terei que fazer debate com Brizola, Ulisses Guimarães, Silvio Santos, todos mais preparados do que eu. E tem um tal de Fernandinho das Alagoas que tem o sinistro PC Farias como arrecadador de grana. Como vou enfrentá-lo?
 – Quanto ao arrecadador, você não sabe do que somos capazes, vamos montar um esquema de mensalão e outro de petrolão. Quanto às provocações, é só você não deixar o seu na reta. Nada de dar aparelho de três em um para amante nem viajar pelo mundo com sua secretária que depois vai dizer que é sua namorada. E tem mais: você vai ter que mentir pra caramba e, se for pego com a mão na botija, vai dizer que não sabia nada de nada.
Barba tornou-se o maior fenômeno político das terras de Santa Cruz sem nunca saber de nada.
Depois do sucesso na liderança do cartel do petróleo, os companheiros acrescentaram uma nova alcunha ao seu nome. Passou a ser o Brahma Barba Inácio da Selva.
Em momento de grande sinceridade, Brahma discursou para seus correligionários: “estou no volume morto, o partido está abaixo do volume morto”.
Só o futuro dirá onde passará seus últimos dias. Na Papuda ou em Cuba: são as opções até o momento.


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